Tenho memórias do velho João Cravador, pastor de cabras de profissão e bruxo nas horas vagas. Os seus gritos, que se ouviam em minha casa e que o meu avô dizia - Lá está o Cravador a chamar o Diabo - eram para mim uma fonte de terror.
A pobreza e a ignorância, amigas íntimas da superstição, levavam as pessoas, à falta de melhor, a procurar ajuda nas forças das trevas. Há sempre quem se aproveite. Não sei como é que o João Cravador entrou nas artes da feitiçaria, mas, como se diz hoje, mesmo na sua ignorância, teve a esperteza de explorar este nicho de mercado.
Assim, em troca de alguns bens, normalmente alimentos, pois o dinheiro era escasso, vendia sonhos a quem vinha de longe para o consultar.
Da minha casa, que ficava ao lado da dele, víamos as pessoas que lá iam, umas a pé, outras de burro, carregando cestos com produtos para pagar os segredos que o meu vizinho lhes revelava.
Para mim, com quatro ou cinco anos, habituada às histórias de feiticeiros e fantasmas que a minha mãe gostava de contar, os gritos do João Cravador, ao mesmo tempo que me aterrorizavam, despertavam a minha curiosidade.
Um dia, a minha mãe, que precisava de coser umas roupas na máquina da nora do feiticeiro, a tia Candeias, e eventualmente pôr a conversa em dia, arrastou-me com ela. Confesso que fui um pouco assustada, mas não tive escolha.

A casa onde a família vivia era pobre, como todas as outras da zona. Era feita de grossas paredes de pedra e barro caiadas de branco, sem janelas e com uma pequena porta de postigo. Os telhados eram feitos de paus e canas e cobertos com telhas feitas nas fábricas de tijolos de Santa Catarina. O chão, feito de telhas de barro, estava gasto e rachado pelo uso.
Naquele dia, por acaso, o feiticeiro tinha clientes e eu assisti ao vivo a uma das suas sessões de feitiçaria. No início, fiquei encolhido ao lado da minha mãe, mas depois a curiosidade levou-me ao local da ação.
Era uma tarde tórrida de verão algarvio, com muita luz a entrar pela porta estreita, mantendo a maior parte da casa na escuridão. Ao fundo da sala, o feiticeiro, com um ar solene, colocava os seus objectos de culto: uma tesoura ferrugenta, um rosário de contas gastas e um pente que devia ser o único na casa.
Os clientes, homens e mulheres, marinheiros da Fuseta ou de Cavacos, com rostos bronzeados pelo sol e um ar sério, sentam-se no chão à volta de João Cravador, que começa a trabalhar. Tirou a bota pesada e cardada do pé esquerdo, revelando uma meia que esperava o inverno para ser lavada. Depois, na haste da tesoura entreaberta, colocou o pente num equilíbrio instável, pronto a balançar com a mais leve brisa. Cantava uma canção que ninguém entendia e, coxeando sobre o pé descalço, dirigia-se à porta, onde, cruzando uma mão sobre a outra, soltava o mesmo grito que se ouvia em minha casa, chamando o Diabo - Vem cá! Vem cá! Depois, olhando para o chão, passo a passo, foi para o seu lugar, murmurando - Hoje está difícil, ele não quer vir. Finalmente, após várias insistências, o Diabo apareceu, provocando um silêncio ainda mais profundo e obrigando a minha mãe a parar a máquina.

Começou então a sessão de perguntas, de que sinceramente não me recordo, e que o feiticeiro transmitia ao Diabo aproximando a boca do pente colocado na tesoura, fazendo-o tremer. As respostas interpretadas pelo movimento do pente eram o resultado da sua vasta experiência no trato com pessoas simples e crentes que o procuravam, sempre com os mesmos problemas, na esperança de que a solução viesse do além, neste caso do Diabo, pois, certamente, nem as perguntas nem as respostas eram próprias para os ouvidos de Deus.
Confesso que, a partir dessa tarde, deixei de ter medo do feiticeiro João Cravador e, muitas vezes, toquei com os mesmos instrumentos, imitando os seus gritos e gestos para uma plateia imaginária.
Hoje, quando olho para o meu passado, apetece-me visitar este lugar e recordar as pessoas que conheci, mas neste caso, nem isso posso fazer. A chamada Via do Infante passou pelo local, destruindo tudo e não deixando qualquer vestígio da casa ou das pessoas que lá viveram e morreram. Simplesmente, tudo foi destruído. Duvido que até o Diabo, que já lá andou tantas vezes, conseguisse encontrar o sítio.







