Não há atrasos nem dúvidas. Quando se aceita (temporariamente) a premissa básica da série, segundo a qual Doctor Who é um alienígena imortal benevolente que periodicamente "regenera" de uma forma humana para outra, não sendo sequer consistente em termos de etnia ou género de um corpo para o outro, sabe-se instantaneamente que é o mesmo Doutor, apesar das aparências.

Com o velho e querido Dalai Lama, é diferente. A reencarnação continua a acontecer, mas as almas dos mortos migram para os corpos dos recém-nascidos e não retêm qualquer memória das suas vidas anteriores. Isto torna-se um problema quando a alma do líder da sua religião tem de ser encontrada num dos milhares que nasceram na mesma altura em que o líder morreu.

É exatamente esse o problema que enfrenta a tradição Gelug "Chapéu Amarelo" do budismo tibetano, cujo líder, o Dalai Lama, fez 90 anos no domingo. Em breve, deixará a sua atual encarnação e caberá aos seus colaboradores mais próximos encontrar a criança em que a sua alma se instalou - que se tornará o próximo Dalai Lama.

É aí que começam os problemas, porque o Tibete faz oficialmente parte da República Popular da China desde a invasão chinesa de 1950 e Pequim não gosta de líderes religiosos que estejam fora do seu controlo. De facto, Pequim não gosta nada de líderes religiosos, especialmente se estes também encarnam as aspirações nacionais de um povo submetido - e muito menos se vivem no estrangeiro

O Dalai Lama preenche todos os requisitos. Fugiu do Tibete no meio de uma rebelião popular contra o domínio estrangeiro, apoiada pela CIA, em 1959. Desde então, tem vivido no exílio na cidade de Dharamshala, no norte da Índia, rodeado por dezenas de milhares de outros exilados tibetanos. E dirige o que é, na prática, um governo tibetano no exílio, embora nenhum outro país o reconheça.

Existe, no entanto, uma grande simpatia ambiental pelo Tibete, não só nos países ocidentais, mas também nos países do Sul global que obtiveram a sua independência no momento em que o Tibete estava a perder a sua. Nunca dizem nada em voz alta sobre o assunto, porque a China é demasiado grande e rica para se arriscar a ofender, mas reconhecem uma relação colonial quando a vêem.

Isto deixa as autoridades comunistas de Pequim nervosas, apesar de não haver um verdadeiro desafio ao controlo chinês. Por isso, vêem o falecimento do Dalai Lama, quando acontece, como uma oportunidade de ouro para "nacionalizar" o budismo tibetano, dando ao Estado o poder de escolher o seu sucessor.

Já tivemos uma antevisão desta situação há 35 anos, quando morreu o Panchen Lama, o segundo depois do Dalai Lama. Depois de uma longa mas discreta busca, os monges tibetanos encontraram um rapaz de seis anos chamado Gedhun Choekyi Nyima que satisfazia os requisitos e o Dalai Lama (no exílio) proclamou-o como o novo Panchen Lama em 1995.


O rapazinho e a sua família foram imediatamente presos e "desapareceram"; nunca mais nenhum deles foi visto. O Dalai Lama não vai cometer esse erro duas vezes: já disse que a sua próxima reencarnação será no "mundo livre", o que presumivelmente significa fora da China.

Mas a grande maioria dos tibetanos continua a viver no Tibete e já é evidente que vão ter um Dalai Lama diferente, escolhido para eles pelo regime comunista. Pode acabar como o Grande Cisma Ocidental de 1378-1417, com dois e depois três papas ao mesmo tempo - e essa situação pode facilmente durar o mesmo tempo, dependendo do que acontecer à China a longo prazo.

Em última análise, tudo isto tem a ver com a sobrevivência de uma identidade tibetana separada, que ainda é teoricamente possível. Pequim ainda não adoptou a solução final que está a aplicar à minoria uigur: nas escolas de ambas as regiões só se pode falar chinês, mas os tibetanos ainda não estão a ser afogados em imigrantes chineses de etnia han.

O regime comunista chinês é agora um pouco mais velho do que era a União Soviética quando entrou em colapso, mas o PCC continua forte. Se durar mais cinquenta anos, a identidade do Tibete será certamente erradicada, pois há mais de 200 chineses por cada tibetano. Mas se desaparecer dentro de 20 anos, a cultura tibetana pode muito bem sobreviver.